Decisões do STF contra parlamentares crescem 20 vezes desde 2005

| Créditos: Felipe Sampaio/STF


O número de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) com impacto direto sobre mandatos parlamentares aumentou quase 20 vezes desde 2005. De prisões preventivas a operações de busca e apreensão, o volume de ações envolvendo deputados e senadores saltou de 36, entre 1988 e 2004, para mais de 700 desde então, transformando o tribunal em protagonista da arena política e acirrando a tensão com o Congresso Nacional.

O caso mais recente envolve o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que responde por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes. A decisão da Primeira Turma do STF de reverter a suspensão da ação penal, aprovada anteriormente pela Câmara, reacendeu a articulação em torno do projeto de lei que limita decisões monocráticas de ministros e levou o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), a entrar com uma ação na Corte contestando a decisão da Turma.

Levantamento do Estadão identificou decisões do STF em três frentes de atuação. A primeira é a criminal, que inclui processos iniciados diretamente no Supremo, como autorizações para prisões. A segunda é a eleitoral, em que os ministros julgam recursos contra decisões dos tribunais regionais, como em casos de cassação de mandato. A terceira envolve disputas parlamentares internas, quando deputados e senadores acionam a Corte para garantir a posse, questionar nomeações ou reverter decisões do próprio Congresso. De 2005 até abril de 2025, foram registradas 704 decisões, contra 36 no período anterior — um aumento de 1.856%.

Para o professor do Insper Luiz Esteves Gomes, os dados revelam uma mudança de comportamento do Supremo ao longo do tempo. Entre 1988 e 2004, a atuação mais contida refletia tanto o perfil mais discreto dos ministros quanto o contexto de transição democrática. O ponto de virada veio a partir de 2005, com o julgamento do Mensalão, que inaugurou uma fase de maior exposição da Corte. A tensão com o Congresso se aprofundou nos anos seguintes, especialmente durante a Operação Lava Jato. “Essas ações também são acompanhadas por uma mudança na Constituição e por mudanças interpretativas do STF”, afirma.

O embate entre os Poderes voltou ao centro da cena política na semana passada, após a Primeira Turma do Supremo derrubar a decisão da Câmara que havia suspendido, por maioria de votos, a tramitação da ação penal contra Ramagem, investigado por envolvimento na tentativa de golpe de Estado. A medida se baseia no dispositivo constitucional que permite à Casa sustar processos penais contra parlamentares, desde que os crimes tenham ocorrido após a diplomação. Os deputados entenderam que todos os cinco crimes atribuídos a Ramagem ocorreram após sua posse, em dezembro de 2022, o que, na prática, abre uma brecha interpretativa que poderia ser usada em defesa de outros réus da mesma ação, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

O Supremo, no entanto, considerou que a sustação tem efeito personalíssimo, válida apenas para Ramagem, e que os crimes mais graves, como tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito e organização criminosa, ocorreram antes do início do mandato. Por isso, manteve o andamento da ação nesses pontos e suspendeu o processo apenas nos trechos relativos a dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Relator do parecer favorável à suspensão, o deputado Alfredo Gaspar (União-AL) afirma que os ministros extrapolaram ao rever a decisão da Casa. “O Supremo errou ao tomar essa medida, e a Câmara está certa em reagir”.

A resposta veio em duas frentes. A primeira foi uma ação apresentada pela Mesa Diretora da Câmara, por iniciativa de Motta, pedindo que o STF restabeleça a suspensão total da ação penal exclusivamente em relação a Ramagem, e que o tema seja analisado pelo Plenário. A relatoria ficou a cargo do ministro Alexandre de Moraes.

O líder da oposição na Casa, deputado Zucco (PL-RS), avalia que Motta teria agido corretamente, e que a Câmara atuou de forma constitucional ao aprovar a suspensão. “A judicialização de decisões parlamentares legítimas precisa ter limites”.

A segunda frente é a articulação para aprovar a PEC que proíbe decisões monocráticas de ministros do Supremo que suspendam atos do presidente da República, dos presidentes da Câmara, do Senado e do Congresso, além de leis aprovadas pelo Legislativo. Já aprovada no Senado, a proposta ganhou tração na Câmara após os recentes embates entre os Poderes.

Autor do texto, o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) afirma que a medida busca aperfeiçoar o funcionamento do Supremo e conter excessos. “Os ministros precisam decidir de forma colegiada. Há um exagero”. Para o parlamentar, o aumento das decisões contra mandatos de congressistas mostra um uso desproporcional das prerrogativas da Corte, que deveria, em sua visão, se limitar a casos estritamente constitucionais.

Na Câmara, a proposta conta com apoio de nomes como o deputado Alfredo Gaspar, que considera o momento propício para avançar com o texto. “Se a PEC realmente contribuir para o aprimoramento do sistema de justiça, é mais do que justo que a gente leve adiante”, afirmou. A posição é endossada por Zucco, que defende urgência na tramitação. “O Senado já fez sua parte, e agora cabe à Câmara reafirmar o papel do Parlamento como poder constituído. É urgente aprovar esse texto”, resume.

A tensão institucional aumentou com a condenação da deputada Carla Zambelli (PL-SP) a mais de 10 anos de prisão pela invasão do sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Embora a decisão ainda não tenha transitado em julgado, o voto dos ministros sobre a forma como a Câmara deve declarar a perda de mandato da parlamentar provocou novo atrito entre STF e Congresso. “Só quem pode cassar mandato é a Câmara, mas houve uma intromissão do STF. No mandato da deputada federal mais votada do Brasil na última eleição”, afirma ao Estadão o líder do PL na Casa, Sóstenes Cavalcante.

Pela Constituição, a perda de mandato em caso de condenação criminal só ocorre após a sentença ter transitado em julgado e deve ser confirmada pelo plenário da Câmara, com ao menos 257 votos. No entanto, o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, defendeu a cassação por faltas, sob o argumento de que a deputada cumprirá pena em regime fechado, hipótese em que a decisão caberia à Mesa Diretora, sem necessidade de votação em plenário.

Para o cientista político da FGV Cláudio Couto, os casos recentes são reflexo de uma relação já desgastada entre os Poderes. “É um jogo de estica e puxa que, nos últimos anos, tem provocado fricções sucessivas. Está piorando cada vez mais”, avalia.

Na sua leitura, a reação no caso Ramagem não se limita ao deputado, mas reflete um movimento mais amplo de autodefesa institucional da Câmara. Para ele, muitos parlamentares veem nas decisões do Supremo precedentes que podem atingi-los no futuro. Nesse contexto, a votação foi lida internamente como um recado político no sentido de que a Corte deve respeitar os limites constitucionais da atuação do Congresso. Trata-se de uma lógica preventiva. “Hoje é com Ramagem, amanhã pode ser comigo”, explica.

Seguindo esse raciocínio, após o revés na Primeira Turma, Motta protocolou uma ação no STF contestando a limitação imposta pela Corte. Para o cientista político Leandro Consentino, o gesto reflete um padrão cada vez mais comum entre presidentes da Câmara, que atuam como “síndicos dos deputados”, defendendo os pares diante de interferências externas. Ao acionar o Supremo, Motta envia um recado à base ao sinalizar que está disposto a agir em defesa de qualquer parlamentar em situação semelhante e, ao mesmo tempo, reforça sua própria legitimidade política. “Ele está mostrando qual é o limite do seu poder institucional já de olho na reeleição”, afirma Consentino.

O desconforto, avalia Consentino, se estende a outras frentes em que o Supremo tem avançado sobre temas sensíveis ao Legislativo. Um exemplo são as ações em curso no STF, sob relatoria do ministro Flávio Dino, que miram a transparência na execução das emendas parlamentares, hoje peça central na articulação política. Nesse contexto, a reação à decisão sobre Ramagem e a insatisfação com o caso Zambelli também funcionam como formas de resposta para conter o avanço da Corte sobre esse território sensível.

Congresso dobra a aposta

Esse movimento de reação não se limita aos casos recentes. A escalada de decisões do Supremo com impacto direto na arena política tem provocado o que juristas chamam de backlash, uma resposta institucional do Congresso às deliberações da Corte. Essa reação se materializa em propostas legislativas que visam não apenas limitar os poderes dos ministros, mas também rever o papel do STF no controle sobre mandatos parlamentares.

Entre as iniciativas estão a limitação de decisões monocráticas, que ganhou tração nos últimos dias; o projeto que propõe mandatos fixos para ministros do Supremo; mais de 90 pedidos de impeachment contra magistrados desde 2016; a PEC 50/2023, que permite ao Congresso anular decisões definitivas da Corte quando considerar que houve extrapolação dos limites constitucionais, atualmente em análise na Comissão de Constituição e Justiça; além de propostas que buscam restringir ordens de prisão e busca e apreensão contra parlamentares.

Apesar da ofensiva do Congresso, cientistas políticos ressaltam que o protagonismo do Supremo também decorre de fatores estruturais. Embora haja um avanço no controle sobre mandatos parlamentares, a judicialização da política é, em grande parte, consequência também da incapacidade do sistema político de arbitrar conflitos, coordenar decisões e construir consensos, além dos elevados níveis de corrupção.

Nesse cenário, a disputa pela maioria no Senado se tornou prioridade nas articulações para 2026. A Casa é considerada estratégica tanto por forças que desejam pressionar o STF, já que cabe aos senadores julgar pedidos de impeachment contra ministros, quanto por grupos que tentam conter esse tipo de ofensiva. Não à toa, Bolsonaro tem repetido ao longo de 2025: “Me deem metade do Senado que eu movo o Brasil.”

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